“NUM ABRAÇO, MULTIDÕES!”: O DIREITO À FRATERNIDADE, A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO E A NONA SINFONIA DE BEETHOVEN

Uma das desafiadoras tarefas do Direito é a de colmatar lacunas na lei. Por vezes, a Ciência igualmente exerce esse papel de preencher lacunas, não de uma lei – embora esta também possa ser o reflexo de estudos doutrinários e, portanto, científicos – mas com relação à compreensão, sobretudo teórica, de um objeto de pesquisa em diferentes áreas do conhecimento humano. Acontece que nem sempre uma lacuna é colmatada, levando-se tão somente em consideração um campo específico de investigação. É o que nos ensina Nicole Leite Morais @nicole_leite, pesquisadora de uma criatividade ímpar, que, com muita maestria, estabeleceu um riquíssimo diálogo entre o Direito e a Música em sua dissertação de mestrado defendida recentemente. Em seu estudo, a autora nos surpreende com algo que talvez possa ter passado despercebido por muitos, ainda que alguns acreditem ser óbvio, mas que, em verdade, não é algo assim tão evidente, a saber, que, dentre os três pilares – libert, galit et fraternit – da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, a fraternidade, lamentavelmente, não foi explicitada em nenhum de seus 17 artigos. Até este ponto, não parece mesmo haver nenhuma novidade, mas o fato é que a autora se vale da Nona Sinfonia de Beethoven, mais precisamente do quatro movimento dessa peça musical universal, enquanto meio para orientar a interpretação da referida Declaração e, por tabela, para preencher a lacuna supramencionada. Soma-se a isso o fato de os anexos desse estudo contarem com nada menos que as cópias das páginas originais da Carta que Bartholomus Fischenich enviou para Charlotte Schiller, em 26 de janeiro de 1793, na qual menciona que Beethoven planejava utilizar a Ode à Alegria [An die Freude] de Schiller em sua composição musical, o que, por si só, faz de sua pesquisa, pela acessibilidade que confere ao leitor a certos documentos de acesso relativamente difícil, uma pesquisa sem sombra de dúvidas relevante. Os títulos de seu trabalho fazem alusão direta aos movimentos da Nona Sinfonia, quase como se fosse possível “senti-los”, e por que não “ouvi-los”? (ainda que mentalmente), à medida que se avança a sua leitura. Chama-nos também a atenção para o fato de Beethoven, mesmo já totalmente surdo, ter conseguido reger sua peça musical, na qual, em seu quarto e último movimento, trouxe, de forma inovadora, um Coro, retomando os três primeiros e proclamando, por meio dos versos do poema de Shiller, a fraternidade como elo, até mesmo divino, entre os homens e as nações. Não é à toa que a Nona Sinfonia represente o hino da União Europeia. Valendo-se das palavras de Sachs (2017, p. 20), Nicole nos traz a ideia de que o Coro talvez tenha sido utilizado “como se o compositor quisesse dar prova concreta de que a msica instrumental absolutamente incapaz de falar”. Assim, seu estudo transcende uma reflexão sobre algo meramente estético, posto que é justamente essa a razão precípua deste estudo de Nicole, qual seja, a de no ano da comemoração aos 250 anos de Ludwig van Beethoven “representar por meio da msica a necessidade de se buscar o verdadeiro respeito ao direito fraternidade, considerando-se a emisso do som das vozes silenciadas e que, ainda, no possuem total amparo e garantia quanto aos seus direitos humanos”. E, por minha vez, valendo-me das palavras da própria autora, “se a justia cega, no sentido de no enxergar diferenas entre os litigantes e garantir a imparcialidade nos julgamentos, o jurista no pode ser surdo! Nem o legislador, nem o juiz, nem a sociedade!”. O texto de Nicole – que traz em suas páginas iniciais a imagem de Beethoven elaborada por Jairo Malta, originalmente apresentada em uma matéria da Folha de São Paulo em homenagem ao concerto Todos Juntos: Uma Ode Global à Alegria orquestrada pela OSESP em 2019 – em breve será publicado na forma de livro. É um texto para se devorar com os olhos!

3.30.21