Traduttore, traditore:

a tradução vai muito além da literalidade

Por Webert Barros

4.1.21

Assim como o letramento vai muito além da aquisição de um código linguístico [uma língua enquanto sistema], embora desta aquele não prescinda, o ato de traduzir não envolve tão somente uma transcrição literal de termos de uma para outra língua. Por longo tempo, perdurou-se o adágio traduttore, traditore [tradutor, traidor], ou, caso se prefira, traduttori, traditori [tradutores, traidores], que redundava na ideia de que essa transposição pudesse ser alcançada automaticamente, “como se se tratasse de uma operação matemática de equivalências entre palavras mediada por um dicionário” (PAGANO, 2003, p. 14) o que, consequentemente, levava à crença de uma transposição ideal, de uma tradução perfeita. “Como as avaliações das traduções freqüentemente (sic) diferiam ou não preenchiam os requisitos específicos de um avaliador, o resultado era rotulado de traição, imperfeição, inexatidão” (PAGANO, 2003, p. 14-15). O fato é que traduzir, assim como o próprio letramento, envolvem questões relacionadas a práticas sociais e, por tabela, culturais. Depende, portanto, do público-alvo, dos objetivos em jogo, e até mesmo de questões de estilo, sendo a tradução literal uma dentre outras possíveis estratégias e/ou instrumentos utilizados no processo de verter uma língua para outra. Se se consideram, em uma primeira instância, os fonemas [sons mínimos indivisíveis de uma língua] e o fato de alguns destes fazerem parte de umas, mas não de outras línguas, e, ainda, que esses sons tendem a gerar efeitos, não só de sentidos, mas também que mexem com a emoção de quem os captam, nem sempre uma tradução literal, de fato, conseguiria dar conta dos efeitos gerados originalmente em certa língua. E é mesmo questionável se o efeito original, mesmo que o tradutor se valha de outra técnica que não exclusivamente a literal, poderia ser mantido em sua totalidade na versão traduzida. Pelo visto, haverá sempre alguma perda em relação ao original. A grande questão então talvez seja o que não se pode deixar de manter dessa versão original. Para além de uma mera transcrição de palavras, deve-se resgatar a ideia veiculada nessa fonte original e, sobretudo no caso de textos artísticos, os efeitos gerados a partir de sons específicos de uma dada língua que nem sempre fazem parte da fonologia de outras línguas. Um exemplo disso (Cf. CAMPOS, 1986, p. 46-47), surpreendente, por sinal, foi a tradução de um dos versos da tragicomédia Cyrano de Bergerac, em que o poeta e dramaturgo Edmond Rostand, pela boca desse personagem título, define o beijo como: « un point rose qu’on met sur l’i du verbe aimer », “um verso alexandrino perfeito, como cabe a uma peça de teatro francês versificado, e que se traduz literalmente como ‘um ponto cor de rosa que se põe sobre o i do verbo amar’”, o que não seria apropriado em português, uma vez que, nesta língua, o verbo em questão não possui a letra i, mas que foi brilhantemente traduzido por Carlos Porto Carrero como: “um ponto róseo no i do lábio que se adora”, por meio do procedimento técnico de tradução conhecido por “compensação”, assim, “jogando habilmente com a equivalência textual e a correspondência formal, que são duas pedras de toque da tradução”. Pode-se até mesmo dizer que o que esse tradutor conseguiu fazer equivalha a uma recriação, um modo novo de dizer a mesma coisa em outra língua que seria impossível de ser dita com termos correspondentes literais. Isto posto, pensando-se no contexto científico, já deu para perceber que, em se tratando de traduções de resumos acadêmicos, valer-se de aplicativos automáticos seria apenas um, porém não suficiente!, meio, ou até mesmo técnica, de tradução de uma para outra língua, não é mesmo?!


Referências:


PAGANO, Adriana. Crenças sobre a tradução e o tradutor: revisão e perspectivas para novos planos de ação. In: ALVES, Fábio; MAGALHÃES, Célia; PAGANO, Adriana. Traduzir com autonomia: estratégias para o tradutor em formação. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p. 9-28.

CAMPOS, Geir. Alguns procedimentos técnicos. In: ______. O que é tradução? São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p. 34-47. (Coleção Primeiros Passos, v. 166).